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UNDER BAR NISEKO: UM DESTINO QUASE SECRETO NO JAPÃO

/ Matéria

Em 2017, após prestigiarmos um show de Hermeto Pascoal e sua banda em um music club, em São Paulo, tivemos o prazer de trocar algumas palavras com o gênio que já passa da casa dos 80 e se esconde por trás da longa e emblemática barba branca. Na ocasião, contamos a Hermeto que a primeira vez que o vimos performar pessoalmente foi em um festival eletrônico, e que, apesar de serem mundos diferentes, pudemos notar diversas similaridades entre seu som orgânico e o digital, com o qual estamos acostumados a lidar. A resposta de Hermeto foi “Música boa é universal. Fala todas as línguas”.

Hermeto estava certo. E para comprovar essa teoria, no outro lado do mundo, numa ilha ao Norte do Japão, uma chama de amor pela música eletrônica é acesa em contraste com o clima gélido das montanhas de neve – a gente precisa falar do Under Bar Niseko

O vilarejo que abriga e batiza parte do nome do Under Bar, fica no distrito de Abuta, uma das regiões que formam a grande ilha de Hokkaido, no Japão. Com uma população de apenas 5 mil habitantes, a pequena cidade é forte no turismo de snowboard e skiboard. Mas é em meio aos picos decorados pela neve que a música eletrônica tem esquentado as noites de Niseko, no espaço especial de um bar quase secreto e com uma pegada bem underground

Como se já não fosse inusitado o suficiente, quem lançou o Under Bar e domina o que acontece por lá é uma brasileira – pasmem. E para explicar melhor sobre esse rolê eletrônico que acontece do outro lado do mundo, conversamos com Camilla Dias, sócia-fundadora do Under Bar Niseko. No momento do nosso papo, enquanto aqui no Brasil as cozinhas já esbanjavam o perfume temperado da hora do almoço, no Japão já era quase tempo de se recolher aos aposentos. “Ohayou Gozaimasu!” (bom dia!), diria Camilla à nós, se nos saudasse em japonês, e “Oyasuminasai!” (boa noite, bom descanso), desejaríamos à entrevistada, ao final da conversa. 

– Uma Brazuca Chegando no Japão

Camilla é brasileira, mas mora no Japão desde a adolescência e foi por lá que conheceu e se identificou com a música eletrônica desde muito cedo. Apesar de ela mesma achar que não possui traços físicos orientais, é descendente de japoneses – e de portugueses, italianos, negros e índios, como muitos brasileiros. Seus primeiros anos em terras nipônicas foram um desafio principalmente por causa do idioma, mas como ela mesma contou, foi ao terminar o ensino médio em Hokkaido que sua proximidade com a música começou a acontecer.

“Eu fiquei dois anos indo pra escola sem entender uma palavra em japonês, sentada na sala de aula com todo mundo me olhando como se eu fosse um E.T., até porque para o pessoal de Hokkaido já era algo meio ‘Uau!’ quando aparecia alguém com uma fisionomia diferente. Então quando eu saí da escola minha sede por conhecer pessoas mais velhas era muita, e dei sorte, porque conheci as pessoas certas, que estavam no mundo da música!”.

Muito próxima de grandes DJs como Ricardo Villalobos, Richie Hawtin, Mathew Jonson, Camilla soube desde o início de suas descobertas na e-music que, mais cedo ou mais tarde, iria trabalhar com música. Nas voltas entre Brasil, Japão e Europa, conheceu grandes players da música eletrônica, como por exemplo o pessoal da Womb, renomada balada de Tóquio e um dos clubs mais conhecidos da Ásia até os dias atuais. 

A experiência adquirida com os anos de vivência no mundo da música deu à Camilla a base necessária para lançar ao mundo um projeto tão ousado como é o Under Bar Niseko – abrir um negócio de música eletrônica numa vila de neve, localizada numa ilha do Japão, é, no mínimo, uma iniciativa arrojada.

– Neve, Sushi e Música Eletrônica

Imagine o seguinte: você e um grupo de amigos estão passando férias num lugarzinho afastado de toda loucura urbana, numa vila enevoada perdida numa ilha do Japão. Durante o dia, as aventuras com ski e snowboard aparentam ser o auge da trip, e pra fechar com chave de ouro, à noite, vocês têm um jantar reservado num lugar pra lá de especial.

Todo mundo já satisfeito com o jantar, crentes de que o quarto de hotel é o único destino que os aguarda depois dali, mas, meio que de surpresa, surgem aos poucos batidas musicais vindas daquele ambiente próximo, até então descansando em silêncio. Parece interessante, e você, animado com a ideia de esquentar a noite com uns goles de saquê, descobre que, ao cair da noite, o ambiente de restaurante é transformado num bar de música eletrônica.

Se der mais sorte ainda, pode ser você e seus amigos estejam de passagem por ali justo no dia em que Mathew Jonson seja a estrela escalada como headliner de um showcase do Under Bar, que acontece no clube Pump It, na cidade ao lado de Niseko, chamada Kutyan.

Sim, o DJ e produtor canadense, um dos artistas mais aclamados mundialmente no universo da música eletrônica, dono de uma habilidade única com as mixagens e seleções musicais, foi o nome de peso que comandou o uma das edições do Under Bar Presents, em dezembro de 2019. 

Tudo isso poderia ser apenas a passagem de um sonho de alguém com a imaginação fértil, mas é a cena real que pode ter sido vivida mais ou menos desse jeito pelos visitantes do pequeno vilarejo japonês.

O Under Bar Niseko, idealizado e administrado por Camilla junto aos DJs e sócios Nobuyoshi Chiba e Junya Takechi, é um espaço pequeno, com uma iluminação aconchegante e rodeado por uma bela paisagem branca de neve, e que se divide entre ambiente de bar, cabine do DJ e área de restaurante que alterna entre dias de cardápio de sushi e menu de comida italiana.

“Em 2019 o Under Bar era em outro lugar, mas a gente teve que sair de lá. Então tínhamos como opção de novo espaço o local onde já funcionava um restaurante, e resolvemos manter o nome do restaurante como nome do espaço geral, “UWamukiLabo+”, sendo ‘Labo’ referente à ‘laboratório’, já que tem várias coisas diferentes dentro do mesmo lugar.”
“A gente tem três times dentro do mesmo espaço, que são o Under Bar, um chef de sushi e um chef de comida italiana. O jantar é menu degustação, para no máximo 12 pessoas e somente com reserva. Os jantares acontecem geralmente entre seis ou sete da noite. Acabando a janta, a gente transforma o lugar num bar. Caso as pessoas que estiverem no restaurante queiram estender a noite, acabam ficando por ali mesmo. Senão, a partir desse horário, começa a chegar novas pessoas pro rolê noturno”.

Quanto aos gêneros musicais que ecoam pela casa, os bpm ficam entre 118 e 126: House, Techno e Minimal dão o tom às noites de música em Niseko. Camilla explicou ainda que, de rotina, o clima do Under Bar não é de festa, mas sim de DJs tocando, mesmo que seja para uma ou duas pessoas. Vez ou outra, acontecem eventos especiais, convidando no máximo entre 60 ou 70 pessoas. “A nossa ideia é atrair pessoas que venham, gostem e voltem. A gente tá tentando criar uma comunidade, pessoas que tragam amigos, e assim ir crescendo”, enfatizou.

“O Under Bar é meio que secreto. A gente não tá preocupado em encher a casa, a gente quer pessoas que estejam correndo atrás de música boa e não sabem pra onde ir. Pra nós é isso o que importa. Quando a gente faz as festas procuro sempre trazer amigos meus, tipo Mathew Jonson. Se for ver, é quase impossível realmente bookar um DJ desse porte pra um tocar aqui para 100 pessoas. Mas a ideia é essa, mostrar para as pessoas que não é toda música eletrônica que tem que ser barulhenta. Tem que ter boa qualidade”.

– Empreendendo na Terra do Sol Nascente

O empreendimento que começou praticamente como uma brincadeira acabou mostrando um grande potencial de sucesso e em 2020 completa dois anos em atividade. Sendo Niseko uma cidadela pequena e que fica movimentada no período do inverno, em virtude do turismo de esportes na neve, é também nessa estação do ano que o Under Bar funciona, recebendo turistas vindos de outras partes do Japão e de diversos outros países. 

Além dessas peculiaridades sobre o bar de música eletrônica numa ilha de neve, Camilla dividiu com a gente outras questões a respeito de empreender no ramo da música no Japão. Apesar de considerar o Brasil muito mais caro para empreender ou consumir no mercado da música eletrônica, ela acredita que alguns pontos tornam esse tipo de negócio mais fácil de acontecer do lado brasileiro:

“No Brasil você tem mais chances de sucesso nesse tipo de empreendimento porque a galera tem sede por música e por dançar, então acho que é até mais fácil, pra falar a verdade. Já no Japão é uma coisa que você tem que começar a ensinar o pessoal a voltar a gostar de música eletrônica, sair pra dançar, e que ir pra uma balada não é ir paquerar, mas sim ir pra dançar, curtir a música, desestressar, tirar tudo pra fora”.

Nos tempos em que estamos vivendo a nível global, com a pandemia do COVID-19, a maior parte dos negócios voltados ao entretenimento (clubes, festas, eventos) estão em stand-by, com seus idealizadores tentando desmistificar quais as saídas para reinventar seus negócios a curto e médio prazo e, é claro, sem deixar de planejar muita coisa boa para o futuro. 

No caso do Under Bar não é diferente. Com toda a confusão e mudanças implicadas pelo isolamento e distanciamento social, o bar está fechado desde março e os planos de abrir novas unidades do bar em outros locais vão ficar para um pouco mais tarde. Pra não deixar a chama apagar, a crew está realizando pequenos eventos ao ar livre, convidando 15 amigos por vez para participar; até agora foram três edições e com os sócios de Camilla sendo os DJs responsáveis pelo som. O desejo de levar o Under Bar aos cantos do mundo não serão deixados pra trás – como Camilla mesmo nos revelou ao final da entrevista, seu sonho é ter, um dia, seu Under Bar no Brasil.

Abrir as portas de um negócio voltado para um nicho tão específico já é um desafio e tanto, até mesmo nos lugares mais óbvios. Mas fazer isso numa zona remota do planeta, é no mínimo audacioso. Mais do que a coragem necessária pra iniciar algo como o Under Bar Niseko, o êxito do bar de música eletrônica no meio de uma vila de neve confirma que Camilla, e os demais envolvidos nesse projeto, compartilham do mesmo combustível que move os fãs do rolê eletrônico: o amor sincero pela música.

TEXTO: ANNABEL GRIGNET

Redatora oficial do Cognição Eletrônica, jornalista inquieta, discente em Música pela UNILA e foliã na cena eletrônica da fronteira de Foz do Iguaçu.